Por Daniela Muradas Antunes e Luíz Carlos Moro - 17/05/2020
Reza o anúncio: ESA/DF ao vivo. 13 de maio de 2020, às 16h. Tema: Dress code jurídico. Como se vestir em reuniões, audiências e sustentações orais por videoconferência?
A hostess é uma ilustrada conselheira da seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. A convidada, uma consultora de moda e personal stylist. A ambas nada se opõe. Não é sobre o valor de seus respectivos trabalhos que a crítica repousa. O problema está em nós.
A própria circunstância de que se entenda conveniente ou necessária a transmissão de lições desse jaez pressupõe o entendimento de que advogadas e advogados sejam desprovidos de noções básicas acerca de como solver suas dúvidas sobre com que roupa eu não vou. Ou o que se poderia chamar dress covid.
O que chamamos de dress covid, mais do que indicar se devemos usar Chanel, Dior ou Riachuelo, tende a responder, parafraseando Noel, com que roupa eu não vou para a nulidade a que você me intimou...
Por isso, a live da liturgia das vestes talares seria imprescindível.
No dia da libertação formal da escravatura que ainda grassa entre nós, em vez de celebrarmos a luta permanente pela liberdade, bandeira eterna da advocacia, vamos estudar a força das camisas e as camisas-de-força da profissão.
Na verdade, inúmeras dúvidas nos assaltam. Tenhamos algumas claras:
Qual o significado das vestes talares quando faltam vestes hospitalares?
Que máscaras vestiremos nesses atos forenses realizados além-fórum?
Que persona se apresenta?
Que direito temos de impor qualquer vestir no vestíbulo da casa ou do escritório dos advogados, asilos invioláveis desses cidadãos?
O que é mais próprio para a simulação de uma normalidade inexistente? Gravata borboleta, para darmos asas à imaginação defensiva ou terninhos monocromáticos apropriados para dissimularmos que estamos em casa, enquanto simulamos seja ela nosso ambiente de trabalho?
Contrataremos cenógrafos? Compraremos orquídeas para que as ideias floresçam? Quais livros exporemos ao vivo das gôndolas do nosso saber? Qual prateleira escolher como pano de fundo? E profissionais dos cabelos e barbas? Como ajustar as madeixas? Afinal, no vídeo, nós vemos e somos vistos...
A câmera deve ficar na posição horizontal ou vertical enquanto se verticaliza o debate sobre o isolamento social? E este, deve ser vertical ou horizontal?
Como vestiremos as crianças, que podem eventualmente invadir o cenário? Bebês Burberry, convenientemente penteados e calados pelo dever de silenciar enquanto suas mães advogadas se desdobram entre as sessões de julgamento a desfraldar argumentos e as horas de desfraldar bebês (sugestão para outra live: desfralde rápido! Será muito útil às mães advogadas)?
O que fazer nos tempos mortos, de espera pelo pregão eletrônico, na fila virtual pelo direito à voz, cujo som não se sabe se de fato está ligado do outro lado da tela? Podemos cozinhar pratos frívolos rápidos ou aquecer os congelados? E se a máquina de lavar terminar o seu ciclo com os estrondosos sons que emite? E como silenciar a centrifugação dos aparelhos que lavam as roupas, inclusive as becas?
Enquanto se espera seja o processo apregoado, há possibilidade de uso de álcool gel nas superfícies potencialmente contaminadas? Limpeza, afinal, é quase tão essencial quanto o funcionamento do Judiciário. É que a limpeza não é constitucionalmente declarada essencial. Adiemos os banhos...
Como se observa, é um tempo de perguntas e não de respostas.
No ambiente oco dos tribunais, resta a gravidade do vácuo, da desocupação, dos seus grandes prédios livres do trânsito da advocacia e da cidadania, que se espera transferido para os lares de advogadas e advogados. Estes que optem. Mantenham os serviços de seus empregados domésticos, acaso os tenham, para a liberação para o trabalho. Ou acumulem objetivamente as tarefas do lar, sempre mais penosas para o universo feminino, por mais colaborativos que sejam seus raros, evoluídos e elegantes maridos. Ou, quando chefes de família, as mulheres que se dobrem ao Judiciário e se desdobrem para as atividades da vida. Sempre convenientemente vestidas.
Então poderemos cumular as preocupações: como vestir-se de modo a um só tempo permitir cozinhar, servir o almoço, sustentar oralmente e participar de audiências nos tribunais do éter, da vida virtual, da tecnologia da apropriação total do ser? Estamos diante da velha e renovada questão do ser ou não ser.
A transferência do expediente forense para o doméstico é, por si, uma aleivosia.
Os produtivistas do Judiciário se regozijam. Afinal, juntos fazemos menos! Separemo-nos! Desdobremo-nos. Produzamos fragmentados. Estabeleçamos um toyotismo sanitário. Façamos audiências, ouçamos as pessoas convenientemente à distância, protegidos, como se os atos judiciários prescindissem do diálogo social, interpessoal e real, da busca de provas presenciais, da interlocução entre pessoas naturais, que salivam, que excretam, que ganham e perdem a vida entre suor, lágrimas, perdigotos, gritos, falas e sussurros.
É visível que na live da venerável vestimenta, há laivos de veleidade, vanidade, vaidade, vacuidade, vazio. Vangloriamo-nos das venerandas vicissitudes. É o vistoso videogame da verborragia venturosa. Vilipendiamos os vínculos verdadeiros.
Vestimos a carapuça!
Quando foi que não nos demos conta de que acabamos com a separação entre público e privado no Judiciário?
Essa premência justifica que façamos da nossa vida privada o espaço público da advocacia?
Eliminaremos os tempos outros, o de descanso, o de dormir, o de criar, o de lazer, o de fazer, a vida social, familiar, o tempo dos cuidados, dos afetos? Tudo será consumido pelo tempo de produzir, acelerando tudo, antecipando tudo, até o tempo de fenecer?
A vedação da vadiagem, da vulgaridade e a vanglória da virtude da versatilidade impõe a covideoconferência: o julgamento de artificialidade pura. Da vestimenta à validação. Os atos não são válidos, mas nós somos valentes e polivalentes. E os validamos assim mesmo.
Matamos o tempo morto. Afinal, o que é a morte? E daí? Sempre se morreu... Não é porque agora há uma nova causa mortis que teremos uma pausa vitae.
A triste verdade é que nós, advogados e juízes, compomos verso e o anverso da mesma moeda de cunha torta do negacionismo dos riscos e da afirmação de uma essencialidade sobreavaliada.
Em regra, negamos vulnerabilidades e óbices às nossas atividades, encontrando sempre uma válvula de escape. Supomo-nos e declaramo-nos essenciais. Poderosos. A força da lei, do Estado, que quase tudo pode. Somos os que se arrogam a voz absoluta da sociedade.
Na realidade, estamos solipsistas. A exceção precisa ser convertida em novo normal. Simulamos a normalidade da cotidianidade mesmo com a morte à espreita. Entendemo-nos mais essenciais do que a própria vida e esse paradoxo nos conduz à preocupação de como nos vestir para os atos que nem deveriam ocorrer, mas que ocorrerão, a despeito da legislação processual. Nós os cumpriremos apesar da evidência material de sua ilicitude e inconveniência.
A nitidez dos efeitos da pandemia é filtrada pela lente de nossa arrogância. Não nos dobramos à evidência de que não há nada que nos permita, sem prejuízo da elegância, abandonar um efetivo e real isolamento social. Queremos o heroísmo da continuidade, apesar dos pesares, dos penares, dos pêsames.
Entre os códigos de conduta e o código de processo, ficamos com o código de conduta e atiramos ao lixo o código de processo, pela afirmação de nossa essencialidade.
É uma questão de cultura. Há dezenas de milhares de mortos. Mas nenhum está aqui para ler este escrito! Mortos não protestam! Que esse obituário não recaia sobre os nossos ombros! Somos os easy riders do Direito. Navegamos sem destino, mas navegar é preciso. Estamos vivos! Sejamos leves! Façamos lives! Pandemia? Não olho. Não ouço. Não falo.
A sugestão de como se vestir para os atos que sequer deveriam ocorrer desnuda a inviabilidade da imposição do trabalho forense sem foro.
Trabalho forense sem foro é o maior desaforo à magistratura, à advocacia, à cidadania. Afora o fato de que o foro físico, hoje fechado, fora necessário aos faraônicos projetos de construção dos tribunais. O que foi fundamental é fugaz.
Mas o que é que a live pretende ensinar? Que o controle de nossos corpos entrou em nossas casas.
Teremos agora uma corporative stylist, que deixou de ser personal, para nos embecar e embelezar. Broadcast yourself, dear lawyer. Do seu home theater. Exponhamos becas e togas (de modelos franceses) para advogadas, advogados cumprirem suas tarefas, sem que se perceba, que às vezes, são apenas bicos e atos vendidos a um a um.
A apropriação dos corpos não é um tema de somenos, nem a arte de vestir-se convenientemente. A live justificar-se-ia, se houvesse a sua antítese, a crítica, a análise da apropriação dos nossos tempos, nossos espaços, nossos corpos, nossos produzires, do que nos tem sido suprimido.
Não há respiradores para a advocacia. Está condenada à suposta essencialidade de si, que paradoxalmente a conduz a sua descartabilidade. Por sermos essenciais, não seremos nos tribunais. Por sermos essenciais, não teremos lar, mas casa e escritório doméstico. Não teremos privacidade, mas provas e vivacidade. Não teremos corpo, mas só a roupa que o reveste: a beca do lar, o pijama cerimonial.
O amor pela profissão subsiste mesmo no tempo das cóleras. A excepcionalidade do período pelo qual passamos não pode, pela longa duração do excepcional, ser convertida em naturalização equivocada, desfocada. Em vez de cominar os efeitos da exceção, tratando-a como tal, estamos a gestar um "novo anormal" que nos põe a pensar.
Precisamos do dress covid? Será esse dress Covid vigente apenas durante a pandemia ou já estamos nos oferecendo para o holocausto posterior, o dos profissionais sobreviventes, com a separação de nossos espaços públicos e privados, para além do tempo da emergência?
Que a Covid-19 nos convide a cogitar das coisas que calados corroboramos e condescendemos. Convençamo-nos do cinismo contemporâneo. O código de conduta não é casual. Concerne ao colapso do conceito de coragem.
Resistir é preciso, à moda da casa.
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Daniela Muradas Antunes é mestre e doutora em Direito e pós-doutora em Sociologia do Trabalho. É professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada e vice-presidente da Associação Latino-Americana de Advogados Trabalhistas (ALAL).
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Luís Carlos Moro é advogado trabalhista e ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e da Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas. É membro da Academia Paulista de Direito do Trabalho (APDT).
Publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, em 14 de maio de 2020.
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As opiniões aqui publicadas são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, o posicionamento da APDT e seus acadêmicos.
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